segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

DESCONHECIDO

(Por Ivan Silva)

Ainda quando trabalhava como vendedor de produtos químicos, levantei cedo e cheio de disposição à vida, apesar dos olhos depressivos.
Sem nada me importar com as horas fui em direção àquilo que me chamava: a condenação, o eletrochoque... sempre que falo algo decorado meu cérebro frita. Enfim, abri o portão da rotina e caminhei como de costume, até encontrar o homem de negócios. Ao encontrá-lo, já com a agonia de uma criança febril prestes a levar injeção na bunda, fui apresentado a um cara, desconhecido, que agora estava ali, batendo um papo com o homem de negócios. Cabelos compridos, enrolados, algumas tatuagens, pernas amputadas... a princípio me cumprimentou e perguntou meu nome, me disse que ficou sabendo das pinturas que faço e da banda que toco. Isso através do já mencionado homem, que se mantinha ali... escutando a prosa atentamente, como alguém que espera um momento de distração pra dar o bote.
Nisso, a conversa foi desenrolando. Dizia o cara desconhecido, à respeito de uma das minhas primeiras perguntas, que perdeu as pernas num acidente de trem, e que após ter despertado no hospital, ganho alta e ido pra casa, "já era, nunca mais vai andar, tudo que for fazer denpenderá dos outros" foi a primeira coisa que ouviu da família. Isso o incomodou, disse também... mas não o fato de ter perdido as pernas. Achava sim que andar ainda era possível... e a idéia de depender de todos em tudo, repeliu com palavrões, eternos vão tomar no cú.
Ao dizer isso, o homem de negócios chacoalhou o rabo... mirei meus olhos no céu nublado e rapidamente me concentrei de novo naquilo que ouvia, ou via, não sei, não importa. O barulho do chocalho era ameaça pequena. O cara desconhecido estava falando de esperança, palavra que ouvi Quintana dizer debaixo d'água... um sopro de vida. Sim.
Dizendo esse cara, não tão mais desconhecido (Dilsin como disse se chamar) que, conversa vai conversa vem, era olhos nos olhos, encarando mesmo... explicou demonstrar sua atenção assim, e continuou, dizendo que após toda aquela imposição de pessimismo, à noite fugiu de casa, decidido ir a até a praia.
E assim foi, entrou na estrada com a cadeira de rodas, usando a força que tinha nos braços e a vontade pra fazer o caminho. Exausto, quando chegou a praia, se jogou na areia, percebendo que a dificuldade em andar ali era maior.
Assim que se recuperou, se moveu até as rochas e ali sentou, lançando no mar a vara de pesca que tinha levado. Sem entrar em detalhes, dizer se conseguiu pescar ou não, após isso, apenas contou que revoltado, tendo refletido sobre os acontecimentos, sociedade, existência, vida, lançou no mar sua carteira.
"Pra quê essa porra de carteira?! Dinheiro, documento... Cansei dessa merda, não faço parte de mais nada!"... nessa parte o homem de negócios tateou o ar com a língua, tornando a balançar o chocalho.
Nisso, Dilsin frisou... falando que às vezes fazemos coisas sem pensar, sem medir as consequências... e que esse momento, da carteira ao mar, mais tarde, considerou ato de liberdade e também mancada.
Mas foi no embalo desse ato de liberdade que pegou sua carteira de cigarro vazia e encheu com areia, na intenção de provar a família que conseguiu ir à praia, e assim, foi rumo à outra cidade, onde aconteceria uma festa rave- afirmou várias vezes o gosto por música eletrônica. No meio da festa, sacudiu feliz a cadeira, rodeado por mulheres, varando a noite na dança orgíaca, indo embora apenas pela manhã. Momento em que percebeu a cadeira bamba... uma das rodas, a pequena da frente que servia de apoio, estava frouxa. Com ela nessas condições, era muito mais puxado, teria que se equilibrar nas duas rodas... Coisa que o levaria a exaustão e depressa, gastaria muito tempo pra chegar ao próximo destino.
Pensou no que podia fazer e procurou uma oficina, a única que tinha na cidade, onde o dono era um pastor, de alguma igreja, não mencionou, ou talvez mencionou e eu tenha esquecido. Só me lembro que, ao explicar a situação, disse o Dilsin, ao ter explicado ao pastor que lançou a carteira no mar e estava sem documentos, nem dinheiro e havia perdido um parafuso e precisava de outro, pra colocar na roda de apoio da cadeira, levou um não, na cara. Começando a ver aí o ato de liberdade como mancada, atitude infeliz.
Isso fez com que cada expressão do homem de negócios fosse traduzida no ar.
"Aí, viu! Era isso que eu queria dizer, não adianta ser radical demais, em algum momento você tem que ser maleável, ou o sistema irá te podar de todas as maneiras."
Mirei outra vez meus olhos no céu nublado e rapidamente me concentrei naquilo que ouvia, ou via, não sei, não importa. O barulho do chocalho era ameaça pequena...
Dilsin continuou, dizendo que depois do não que levou, resolveu ir a delegacia, pra tirar novos documentos, assim poderia sacar dinheiro no banco e comprar uma passagem de ônibus, pra voltar pra casa. Quando procurou a delegacia, pegaram seus dados e deram dois dias pra que os documentos ficassem prontos. E isso, à base de abuso de poder, preconceito, humilhação.
"Um cara aleijado desse não é humano", alto e claro, disse que ouviu isso vindo de um grupo de policiais. O ódio o fez desejar ter pernas ainda, só pra poder dar pelo menos uma porrada bem dada no policial que disse isso, mesmo que morresse com um tiro. Essa foi a primeira vez que ele se considerou um aleijado... Passado isso, foi direto pra casa, encontrando lá sua mãe que estava desesperada. Ninguém conseguia acreditar no que ele tinha feito, no acontecido... mas a partir daí ele voltou a mexer com artesanato, que antes do acidente já era seu trabalho.



*Nesse texto tem um pouco de uma das conversas que tive, em 2012. Conversei uma vez só com esse camarada, o Dilsin, que na época morava em Minas, se não me engano, acabou vindo parar na cidade. Depois disso perdi o contato... não sei o que anda fazendo. Imagino que dando força a outros cadeirantes por aí.

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