segunda-feira, 17 de junho de 2013

MESES DE EXPERIÊNCIA

(Por Ivan Silva)

  A procura de um outro fazer, enojado com os quatro meses de recuperação - e foram quase sete anos mexendo com venda de produtos... Decidi tentar trabalhar numa atacadista. Claro que antes tinha que ouvir propostas, passar por acompanhamento psicológico... O que pra mim não fazia diferença nenhuma, pois estava decidido a encarar o serviço fosse qual fosse as condições. Estava apenas deixando a vontade de não querer mais ficar na mesma situação fluir. Situação estado de espírito mesmo, depressão desgraçada. Aceitei sem pensar duas vezes. Entreguei meus documentos já perguntando quando começava, com um alívio de quem esmagou pimenta com os dedos, e antes de lavar as mãos instintivamente vai limpar o nariz. No dia seguinte estava lá. Uns colegas de serviço no bar, outros a fumar cigarro, fazendo piadas, cada um se descontraindo do seu jeito, imaginei, procurando não interferir no que se passava. Foi o portão começar abrir e os passos desataram, agitados. Dentro do galpão o incessante movimento das mercadorias, enquanto eu aguardava instruções do gerente que pagava sapo a dois encarregados em seu escritório. Terminando, me chamou todo cheio de formalismos, pediu que eu me sentasse na cadeira e continou. "Bom, é o seguinte, vou te explicar umas coisas, aqui na empresa não sei se a psicóloga te falou, mês passado por causa de brincadeira um funcionário esfaqueou o outro ali durante o serviço, e você sabe, homem tem disso, dessas bobeiras, é chamar o outro de filho da puta, corno, e por aí vai... Você tem problemas com convivência? Beleza. Isso mesmo, o trabalho aqui é em equipe, somos uma família. Outra coisa, o horário às vezes varia, acaba mais cedo, mais tarde, mas é esse mesmo, das seis da tarde às seis da manhã, puxado, mas tem janta, lanche, e não tem dessa de 'ah, eu não vou jantar, quando chegar em casa eu janto' porque não tem quem agüenta! Todo mês a gente dá vale refeição que já vem descontado no salário, tudo certo?! Então vamos lá fora que vou te explicar o que tem que fazer." E lá estava eu, executando o que um funcionário com mais tempo de firma dizia. No total eram vinte e duas ruas (corredores enormes com prateleiras gigantes), cheias de gente caminhando e separando embalagens de todo tipo de fabricante. E carregue extrato de tomate, leite, doce, bolacha, cachaça, sabão, água sanitária, soda caústica... produtos, produtos, produtos, produtos...
  Mais do que perdido no meio disso tudo larguei um tipo de carrinho de mão que chamavam de burrinha e fui ajudar um dos carregadores de caminhão. "Ó o cara, mal começou já vai fazer carregamento", ouvia isso enquanto me matava mais um pouco. "Esse é bom de serviço". Apesar da maldita dor nos rins, a sensação era de estar contribuindo com a realização de algo importante. Minutos antes do jantar e metade da turma corria pra bater o ponto, loucos de fome, deixando a outra metade que continuava o serviço esperando seu horário: cada metade tinha o seu. Esquecer de fazer isso todo dia não era raro. Refeição farta. Uns apressavam os outros na fila, sempre com piadas sobre a putaria do fim de semana, sobre quem alguém pegou, brigas, casamento, chifres, bebedeiras... e o pessoal da cozinha ali, dando resposta a marmanjo que pedia por uns pedaços a mais de carne. Já vinha descontado no salário.
  Depois da refeição era ficar no pátio... normalmente eu sentava lá no chão mesmo e ficava quieto, fazendo a digestão, enquanto a rapaziada assistia programas pelo celular, conversava com a esposa ou falava das noitadas. Prazeres, sacanagens, putas, vídeos caseiros, uma baforada de fumo queimado diluída na escuridão. E assim ia, até o gerente aparecer na porta e lembrar que as mercadorias estavam esperando. Quanta merda. Noites e noites passaram... mudança de cargo, sonos perdidos, dor de cabeça, funcionários entrando nos tapas por causa de disputas entre si, ônibus fundindo motor justo com um motorista novato que querendo ou não levou a culpa. Na tarde seguinte chega um caminhão desses baú pra transportar os funcionários, com muitos risadas de insatisfação. Nesse dia me perguntei o porque da barreira policial. Me lembrei dos navios negreiros...
  O cargo ocupado por mim nesses quase três meses já era o de separador. Separa aqui, separa ali, "tira a burrinha do caminho se não os conferentes vão enrrabar quem trabalha na rua um (setor de bolachas), anda logo que eu tenho que pegar minha carga". Essa lenga-lenga todo dia não era rara. O próprio encarregado não sabia o que estava fazendo desde o começo, e só eu desconfiava da cilada? Minha vontade de fazer alguma coisa, viver, experimentar, conhecer e até perceber alguns sabores antes não percebidos, esquecidos, escondidos na memória pelos delírios da infância, tinha se resumido a subir em prateleiras, no ponto mais alto delas. Quanta merda. Salário, sesta básica, extrato de tomate, doce, bolacha, cachaça, sabão, água sanitária, panetone... E foi novembro, e foi dezembro, estava indo janeiro... e lá estava a família, a equipe, reparando nas roupas, mostrando o que tinha comprado de novo, se indignando com o salário dos funcionários mais antigos. Meu parceiro de rua trabalhava feito um condenado, a mil por hora, de segunda à sábado (dia de serviço cada vez mais frequente). Conversando com ele fiquei sabendo que em seis anos de empresa nunca tinha pego um dia de folga, coisa certa nesses sábados, pelos menos pra um separador. E eu ainda cumprindo os meses de experiência, na semana passada já tinha pego. Revoltante. Acabamos combinando dele pegar folga no sábado que viria, tive que falar.
  Encerrando expediente, o encarregado. "E aí, como é? Amanhã o menino aqui vem e você tira o dia de folga, José?" Um longo silêncio entalado... "Não, pode ser, não! É sim ou não".
  E o que veio no dia seguinte foi eu ralando, correndo sem parar, separando, puxando burrinha, descendo o que faltava das prateleiras, trocando o que foi separado e não estava nos pedidos, repondo... Nem um grão do serviço feito durante seis anos... Nesse dia, fui o último a sair. Sabendo que ali não continuava mais.

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